
Por Fernando Liguori | Frater AHA-ON 777
@estrelaeserpente | @argentiumaster | @hermakoiergon
Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.
De todo não temais; não temais nem homens nem Fados, nem deuses, nem coisa alguma. Dinheiro não temais, nem risada da tolice do povo, nem qualquer outro poder no céu ou sobre a terra ou debaixo da terra. Nu é vosso refúgio como Hadit vossa luz; e Eu sou a potência, força, vigor, de vossas armas.[1]
Por que, após sete anos de silêncio, erguer novamente a pena para escrever um novo tratado sobre a magia sexual thelêmica, diretamente vinculada ao sistema iniciático da Ordo Templi Orientis, O.T.O.? Porque, ao longo das últimas duas décadas, os mistérios que outrora elevavam a Ordem a um status de guardiã da sagrada Arte Régia vêm sendo diluídos, corrompidos por um espírito estranho ao que foi estabelecido por O Livro da Lei. A Ordem, em sua essência, deveria ser um refúgio para os que ousam trilhar o Caminho da Arte Real sem as correntes do moralismo comum. No entanto, vemos agora sua estrutura sendo enfraquecida por uma retórica profana, que abraça abertamente conceitos modernos como teoria e linguagem de gênero, feminismo, ativismo queer[2] e outras ideologias sociopolíticas que, sob um pretexto ilusório, tentam ser justificadas como valores thelêmicos. Mas nada poderia estar mais distante da verdade, nada poderia ser mais anti-thelêmico.[3] Thelema não se curva a agendas externas, nem se submete às imposições de qualquer Zeitgeist – pois seu coração pulsa na única máxima que realmente importa: Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei.[4]
E se essa é a Lei, como pode um verdadeiro thelemita aceitar qualquer compulsão, seja a favor ou contra qualquer crença, ideia ou comportamento? Não importa quão odiosa, perniciosa ou até mesmo criminosa seja uma ideia – Thelema não permite sua proibição, pois a liberdade de errar e aprender é um princípio inviolável. Cada homem e cada mulher deve ser soberano de sua própria alma, pois tu não tens direito a não ser fazer a tua vontade.[5] A imposição de qualquer dogma ou ideologia, por mais embalada que seja em belas palavras, é um ultraje ao espírito da autogovernança divina, que é a própria espinha dorsal da filosofia estabelecida em O Livro da Lei. E assim, voltamos ao momento crucial da iniciação na O.T.O., quando o Saladino se dirige ao Minerval e lhe faz a pergunta que ecoa como um juramento de ferro: Estás preparado para defender estes princípios com a tua vida? Ora, se agora a Ordem impõe uma visão ideológica, e pior, uma visão que Aleister Crowley, sem hesitação, condenaria como violadora dos princípios da Lei de Thelema, como pode ela ainda se proclamar uma guardiã da Verdadeira Liberdade?[6] Impossível. A execução da Vontade não se dobra às amarras da moralidade convencional.[7] E quem ousaria julgar a Lei? Apenas aquele que ainda não a compreendeu.
No II° O.T.O. o candidato jura em voz alta e com a mão direita levantada que viverá de acordo com a Declaração de Direitos do Homem, que inspirou a criação de Liber LXXVII vel Oz como um manifesto da ordem.[8] Um dos objetivos iniciáticos deste grau é libertar o adepto do pecado original, corrigindo o curso de direção de sua Vida, para que ele viva em acordo com a autoridade civil (Geburah) e religiosa (Chesed) de Liber LXXVII vel Oz. A correção na direção de sua Vida é no sentido em que, a partir daquele momento, o indivíduo tem o direito inalienável de viver segundo seus próprios códigos éticos, morais e intelectuais, e não submetido a códigos ou ideologias que buscam restringir e direcionar suas ações. A Iniciação no II° O.T.O., relacionada ao anāhata-cakra e as sephiroth Tipheret, Geburah e Chesed na Árvore da Vida, ensina que o adepto deve viver a sua Vida em acordo a sua Vontade, sendo verdadeiro e conquistando a si mesmo.
Chesed, acionada no II° O.T.O., onde a Vida começa a seguir o curso da Vontade, é o mesmo local onde ocorre a iniciação do VII°, o Soberano Grande Inspetor Geral da Ordem, e também onde são ordenados os Bispos da Igreja Gnóstica Católica. Neste grau o adepto é exortado a cumprir um rígido código de castidade que deve seguir as premissas filosóficas de O Livro da Lei: tomai vossa fartura e vontade de amor como quiserdes, quando, onde e com quem quiserdes! Mas sempre para mim.[9] A castidade do VII° O.T.O. é definida como a observância estrita de um juramento mágico. Sob a luz da filosofia de Thelema, isso significa absoluta e perfeita devoção ao sagrado anjo guardião, e um caminho individual que leve a realização da Verdadeira Vontade.[10] Em seu Pequenos Ensaios em Direção à Verdade, Crowley compara a castidade a redenção da Lança Sagrada que deverá se unir ao Santo Graal, o tema central da Missa Gnóstica na O.T.O. A castidade a qual Crowley se refere como um juramento e ordálio do VII° O.T.O., é a devoção total a realização da Verdadeira Vontade, vivendo a Vida como um instrumento do Um Deus Verdadeiro. No entanto, todos os códigos de moral são arbitrários.[11] Na prática, uma vez que códigos de moral são formulados pela vontade de alguns sobre outros, sendo, portanto, este um tipo de moral para escravos, os Grandes Inspetores da O.T.O. são exortados a seguirem a moral dos senhores, que é a moral da Verdadeira Vontade. Em outras palavras, a seguirem as diretrizes de Vida mais apropriadas para si mesmos. A castidade busca, portanto, refinar a qualidade da Verdadeira Vontade, porque ela sacrifica o desejo em detrimento da vontade: Mas sempre para mim.[12] Seguir diretrizes de ideologias político-sociais é aderir a moral dos escravos. É abdicar a autogovernança divina em favor da vontade de um indivíduo ou grupo de pessoas.
No Ritual de Iniciação da O.T.O. o Saladino exorta o Minerval iniciante a meditar sobre um paradoxo:
Para que vocês possam fazer a única coisa que verdadeiramente querem, vocês devem renunciar a todas as demais coisas que lhes possam tentar a se desviarem do propósito da sua estadia conosco. Esta tenda, sob cujo dossel eu me sento, é sustentada pela rigidez do seu suporte. Ele cumpre com o seu desígnio, pela virtude da sua disciplina. Eu lhes encarrego, pois, de meditar sobre este paradoxo, de modo que vocês possam entender a necessidade de se submeterem a este curso de treinamento que lhes tornará eficientes como Soldados da Liberdade. Que eu possa, ainda, lhes assegurar de que a palavra da liberdade não é um termo vão para nós. Nós não sabemos nem nos preocupamos com o que seja a sua vontade. «Tu não tens direito senão fazer a tua vontade. Faz isso, e nenhum outro dirá não.»[13]
Em Liber Aleph, Capítulo 37: Do Cultivar Força via a Disciplina, Crowley completa:
Considera o Laço de um Clima frio, como isso faz do Homem um Escravo: ele deve obter Abrigo e Comida com grande Esforço. Entretanto, assim ele se fortalece contra os Elementos, e sua Força moral aumenta, de maneira que ele é Mestre de Homens que vivem em Terras de Sol onde as Necessidades físicas são satisfeitas sem Luta.
Considera também aquele que deseja exceder em Velocidade, ou em Batalha, como ele se nega a Comida que deseja, e todos os Prazeres que lhe são naturais, colocando-se sob a Ordem severa de um Treinador. Assim por esta Servidão ele tem, por fim, sua Vontade.
Portanto, um por natural, e outro por voluntária Restrição, chegaram cada qual a uma Liberdade maior. Isto é também uma Lei geral da Biologia, pois todo Desenvolvimento é uma Estruturação; isto é, uma Limitação e Especialização de um Protoplasma originalmente indeterminado, o qual pode portanto ser chamado livre, na definição de um Pedante.[14]
E em Oito Palestras sobre Yoga, ao falar sobre yama, Crowley expõe:
Agora, o que é verdadeiro para as células também é verdadeiro para todos os órgãos já potencialmente especializados. O poder muscular se baseia na rigidez dos ossos e na recusa das articulações em permitir qualquer movimento em qualquer direção que não seja a indicada. Quanto mais sólido for o fulcro, mais eficiente é a alavanca. A mesma observação se aplica a questões morais. Essas questões são perfeitamente simples em si; mas elas foram completamente sobrepostas pelas atividades sinistras de padres e legisladores. [...] O resultado de tudo isso é que todos vocês, que valem o que recebem, ficarão absolutamente encantados quando eu disser a vocês para descartar todas as regras e descobrir as suas próprias regras. [...] Faz o que tu queres há de ser tudo da Lei. Isso é Yama. Sua Verdadeira Vontade é alcançar a consumação do casamento com o universo, e seu código de ética deve ser constantemente adaptado precisamente às condições do seu experimento. Até mesmo quando você descobrir qual é o seu código, você terá que modificá-lo à medida em que avança; «moldá-lo novamente, mais conforme ao desejo do coração» – Omar Caiam.[15]
E no Magia em Teoria & Prática, Crowley conclui:
Podemos, então, deixar de discutir Yama e Niyama com este conselho: que cada estudante decida por si que maneira de vida e que código moral menos tenderá a lhe excitar a mente; mas, uma vez tendo se decidido a seguir uma regra particular de vida, que persista em sua decisão, evitando o oportunismo; e que se precavenha contra se atribuir «mérito espiritual» pelo que faz ou pelo que deixa de fazer: qualquer código é simplesmente de valor prático, relativo à intenção de acalmar a mente. Não tem nenhum valor absoluto ou intrínseco.[16]
No sentido técnico, o que a filosofia de O Livro da Lei condena ou proíbe, portanto, é a interferência no direito inalienável de executar a sua própria vontade, a despeito de qualquer consequência, porque a palavra de pecado em Thelema é restrição.[17]
O homem tem o direito de viver por sua própria lei —
de viver da maneira como quiser viver:
de trabalhar como quiser:
de brincar como quiser:
de descansar como quiser:
de morrer quando e como quiser.
[...] O homem tem o direito de pensar o que quiser:
de falar o que quiser:
de escrever o que quiser:
de desenhar, pintar, lavrar, estampar, moldar, construir como quiser:
de se vestir como quiser.[18]
Isso significa que, caso seja racista ou misógino, você tem o direito de sê-lo, e nenhum thelemita deveria cogitar restringir a sua liberdade de ser o que quiser. Se o homem deseja escravizar uma mulher, se é esta a sua vontade, então ele tem o direito de fazê-lo; mas caso a mulher não concorde em se submeter ao homem, ela tem o direito de feri-lo ou até matá-lo: O homem tem o direito de matar esses que quereriam contrariar estes direitos.[19]
A atual administração entregou os arcanos secretos da ordem nas mãos de indivíduos que, guiados por uma presunção choronzônica, têm deturpado o sistema de magia sexual da O.T.O.[20] Falando claramente, o sistema de iniciação da O.T.O. é fálico, androcêntrico,[21] destinado, portanto, ao desenvolvimento da espiritualidade e dos poderes conectados a fisiologia masculina. Em outras palavras, o sistema da O.T.O. é para homens, indivíduos com Falo e a capacidade de restaurar a Palavra Perdida. Trata-se do empunhar bem-sucedido da Lança Sagrada, a manipulação e projeção do Fogo no Tubo de Prometeu. Como demonstrarei nesta série de livros do Segundo Volume de O Olho de Hoor, o papel da mulher no sistema de iniciação da O.T.O. é servir apenas como um veículo temporário ao poder nela introduzido. Isso é um fato!
Por volta de 2018, ano que adormeci meu trabalho externo da Astrum Argentum, A∴A∴, começou a circular nos EUA e em seguida no Brasil um slogan entre as thelemita-z feministas com a seguinte mensagem estampada em camisetas, botons e bonés: não sou sua Babalon. Ledo engano destas tolas escravas do porque.[22] São as soldados profissionais[23] que brincam de deturpar a fórmula mágica da magia sexual thelêmica, que é fálica, para homens. Elas não aceitam que sejam consideradas apenas o veículo temporário do poder. Mas as coisas são como são: i. fatos são fatos e contra fatos não há argumentos; ii. os fatos não se importam com os sentimentos das pessoas, neste caso, das feministas.[24]
Todo o sistema de magia sexual de Aleister Crowley opera em torno da fisiologia masculina; isso mesmo, um homem, a fim de descobrir o método pelo qual ele pode produzir uma secreção específica que o capacite a produzir o gênio. Não é necessário ter uma parceira em pé de igualdade iniciática para alcançar esse objetivo e, se você é uma daquelas pessoas que sinceramente acredita que isso é necessário, talvez deva se lembrar desta passagem da instrução do IX° O.T.O., Liber Agape vel Azoth: O homem é o guardião da Vida de Deus; a mulher é apenas um expediente temporário; um santuário, de fato, para o Deus, mas não o Deus. Como postula o Liber Oz: Não existe deus senão o homem. Frisando: senão o homem, e não a mulher, porque o PHALLUS faz do homem a imagem criadora do Um Deus Verdadeiro. Em outras palavras, o PHALLUS é um instrumento do Um Deus Verdadeiro no homem. É neste sentido técnico que não existe Deus senão o homem.
Na magia sexual thelêmica, portanto, uma vez compreendido que uma parceira feminina é simplesmente um veículo cujo ventre carrega o filho mágico, você pode se concentrar numa variedade de parceiras-matrizes como substitutas ao ofício da Mulher Escarlate. Mas muito embora a mulher seja apenas um veículo, ou usada para o ofício de Mulher Escarlate, para falar tecnicamente, ela não deve ser desdenhada, porque como a própria instrução do IX° aponta, trata-se de um santuário, um sacrário sagrado que conterá a Palavra Mágica e, portanto, dela vem todo o poder. Ela é, assim, uma ponte entre dois mundos. Isso significa que o corpo feminino tem uma conexão direta com a fonte da criação. Mas o problema real está aqui: a mistura de fluidos sexuais produzirá o Elixir da Vida, que pode facilmente proporcionar coisas maravilhosas, mas a maioria dos homens não está preparada para cumprir sua parte da equação a fim de produzir a conexão mágica que os liga a: i. a fonte do Um Deus Verdadeiro para alimentação da Lamparina Mágica,[25] estabelecendo assim a medida correta entre o céu e a terra ao empunhar a Lança Sagrada; ii. a sua mulher metafórica interior, ou sua carne à sua alma; iii. as mulheres-veículos que servirão de altar para realização de sua missa.
Não estou dizendo com isso que as mulheres não possam tomar as rédeas e alcançar os mesmos objetivos de produzir o gênio como os homens. Estou apenas dizendo que, dentro do escopo da magia sexual da O.T.O., esta não era uma preocupação de Crowley. Seu método simplesmente usa a mulher e depois a descarta, como se ela já não fosse um veículo válido para suas aspirações sacras, ou quando sua genialidade começa a declinar. Isso é um fato, não uma narrativa. Se você é honesto e estudar, enxergará.
Diante do exposto, fica claro que a verdadeira essência da magia sexual thelêmica e do sistema iniciático da O.T.O. foram severamente deturpados nos tempos modernos, obscurecida por ideologias incompatíveis com os princípios fundamentais de O Livro da Lei. Thelema exige liberdade absoluta, treinada pela autodisciplina,[26] e sem restrições impostas por moralidades exteriores, e a O.T.O. em sua concepção original na administração de Crowley, foi estruturada para conduzir o adepto ao despertar de sua Verdadeira Vontade por meio da manipulação de energias sexuais de maneira estritamente funcional. Qualquer tentativa de reconfigurar essa tradição à luz de discursos políticos modernos é uma traição aos próprios fundamentos sobre os quais a ordem foi erguida.
O sistema de Crowley é androcêntrico, fálico e fundamentado na realidade biológica do operador, onde o PHALLUS é a chave da criação mágica. Aqueles que se recusam a aceitar essa verdade essencial estão fadados a distorcer e enfraquecer os mistérios, reduzindo o que deveria ser um caminho de iniciação espiritual à mera imitação superficial e desconectada da potência mágica original.
Portanto, este livro se faz necessário: para restaurar, resgatar e reafirmar os verdadeiros segredos da magia sexual thelêmica, tal como ela foi concebida, sem concessões, sem distorções e sem submissão às pressões de pseudothelemitas que esqueceram o verdadeiro significado da Liberdade.
Amor é a lei, amor sob vontade.
Este texto é um excerto de A Lança & o Graal, em breve disponível.
NOTAS:
[1] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, III:17.
[2] No contexto da O.T.O. veja, por exemplo, Carmen Laeta Gladio. Babalon in the Age of #MeToo. Em Fear Not et All: Proceedings Of the Biennial National O.T.O. Conference, 2019. Ordo Templi Orientis, 2023, pp. 119-30. Veja também Brandy Williams. Feminist Thelema. Em Beauty and Strength: Proceedings Of the Biennial National O.T.O. Conference, 2007. Ordo Templi Orientis, 2009, pp. 161-85. E no contexto da comunidade thelêmica, veja o enfadonho livro de Manon Hedenborg White. The Bloquent Blood: The Goddess Babalon & the Construction of Femininities in Western Esotericism. Oxford University Press, 2019. Nessas fontes, vemos uma tendência preocupante: a infiltração das missivas do que se convencionou chamar de cultura woke no discurso thelêmico, moldando injunções que devem supostamente ser abraçadas pelos adeptos. Mas um verdadeiro thelemita nunca dirá o que você deve ou não deve ler, em que deve ou não acreditar, o que deve ou não fazer. Isso é cair no buraco chamado Porque (Liber AL vel Legis, II:27), onde a Verdadeira Vontade se dilui em justificativas e imposições externas. A A∴A∴ não é um espaço para conformidade ideológica, mas uma escola onde se ensina o indivíduo a pensar por si mesmo, a seguir a senda da consecução do gênio. A O.T.O., sob a administração de Aleister Crowley, foi sistematizada para difundir a mensagem libertária de O Livro da Lei – e não para servir como um eco das filosofias e causas sociais do momento. A Lei de Thelema se opõe categoricamente a qualquer ideologia, filosofia, religião ou sistema político que vise castrar a Verdadeira Vontade do homem, transformando-o no homem-massa descrito por José Ortega y Gasset (1883–1955): o indivíduo que renuncia à sua própria soberania, conformando-se à mediocridade e aceitando, sem questionamento, as normas e opiniões dominantes.
Ao invés de cultivar a potência do seu gênio, o homem-massa se abandona ao coletivo, vivendo uma existência pautada na repetição e na imitação – uma marcha inexorável rumo à decadência da cultura e da excelência humana. Ele é a antítese do verdadeiro thelemita, pois ignora a máxima de que todo homem e toda mulher é uma estrela (Liber AL vel Legis I:3). E assim, esse mesmo homem-massa de Ortega y Gasset se revela como o povo descrito em O Livro da Lei (II:25, III:8, III:17) – a grande manada de escravos que devem servir (II:49, 54, 58). Pois apenas os que conquistaram a consecução do gênio, os aristocratas da liberdade, os que ousaram trilhar o Caminho da Estrela, são de fato thelemitas. O chamado de Thelema não é um grito por igualdade forçada, nem por aceitação passiva dos valores externos, mas um clarim que convoca os poucos e os fortes a reclamarem o direito divino à sua própria Vontade.
[3] Na edição de março de 2017 (Vol. XVII, No. 1) da Agape Magazine, uma publicação oficial da O.T.O. nos EUA, foi publicado um editorial que estabelece diretrizes sobre como um thelemita deve se comportar. No entanto, a mera sugestão de um comportamento ou atitude padrão já representa uma violação aos princípios fundamentais de Liber Oz, pois impõe um modelo uniforme de conduta que contradiz a própria essência de Thelema. Submeter a comunidade thelêmica a um código de conduta coletivo é alinhá-la à mentalidade pueril e conformista da grande massa – aqueles que, conforme os princípios de O Livro da Lei, representam o povo ao qual devemos nos opor (II:25). Esse movimento em direção à mentalidade de rebanho é um dos maiores perigos para a liberdade individual, um risco que já foi abordado no O Olho de Hoor (Vol. I, No. 3), onde se explora os danos causados por políticas que transformam indivíduos soberanos em seguidores passivos.
A advertência contra o coletivismo e a supressão da individualidade não é uma questão nova em Thelema. Na introdução à edição de 1938 de O Livro da Lei (Seção V), Crowley expõe essa ameaça com clareza profética: A democracia esquiva-se. O fascismo feroz, o comunismo cacarejante, igualmente fraudulento, cavalgam loucamente por todo o globo. Estão a cercar-nos. São nascimentos abortivos da Criança, o Novo Aeon de Hórus. A Liberdade agita-se de novo no ventre do Tempo. A evolução faz as suas mudanças por caminhos anti-socialistas. O homem «anormal» que prevê a tendência dos tempos e adapta as circunstâncias de forma inteligente, é ridicularizado, perseguido, muitas vezes destruído pelo rebanho; mas ele e os seus herdeiros, quando a crise chega, são sobreviventes. Sobre nós paira hoje um perigo que nunca teve paralelo na história. Suprimimos o indivíduo de forma cada vez mais intensa. [...] O mundo só se move à luz do gênio. O rebanho será destruído em massa. O estabelecimento da Lei de Thelema é a única maneira de preservar a liberdade individual e de assegurar o futuro da raça. (Weiser Books, 1976, pp. 14-5).
A advertência de Crowley ressoa com uma urgência inegável: o futuro pertence àqueles que ousam ser diferentes, aos que rejeitam a tirania da mediocridade e se elevam à condição de estrelas, brilhando solitárias no firmamento. Thelema não é uma filosofia para as massas, mas um chamado àqueles que têm a coragem de trilhar o Caminho da Arte Real na busca da Verdadeira Vontade. Se há um princípio que deve ser preservado, é a soberania do indivíduo sobre sua própria existência. E a história nos mostra, de forma implacável, que sempre que o rebanho tenta suprimir o gênio, é o rebanho que perece, enquanto o thelemita – o verdadeiro Senhor da Terra – se ergue sobre os escombros das velhas ordens, portando em suas mãos a tocha da Liberdade.
[4] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, III:60.
[5] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:42.
[6] É necessário, antes de tudo, uma autocrítica à minha própria crítica. Falo a partir de uma perspectiva êmica, ou seja, de dentro da estrutura de Thelema, posicionando-me veementemente contra as falsas premissas de comportamento woke que foram impostas pela nova administração da O.T.O. e, de maneira acrítica, assimiladas por uma grande parcela dos thelemita-z – os thelemitas da geração Z. Estes, sem a devida compreensão dos princípios de Liber Oz, não enxergam que tais diretrizes são uma extensão natural das premissas libertárias de O Livro da Lei, quando não as deturpam e as submetem a valores que, como demonstrei anteriormente, são completamente alheios ao espírito da Lei de Thelema.
Entretanto, sob um olhar ético e histórico, não se pode negar que foi justamente o imaginário cultural europeu do final do Séc. XIX que permitiu o renascimento da magia ocidental e a eclosão do que se convencionou chamar de magia sexual dentro do esoterismo moderno. A tendência anticlerical e cientificista-positivista desse período, permeada pelo darwinismo social, somou-se ao espírito de revolta contra os dogmas da moralidade vitoriana na Inglaterra e nos EUA, resultando numa explosão de novos paradigmas mágicos, filosóficos, culturais, sociais e religiosos.
Dessa mesma matriz histórica emergiram outros movimentos revolucionários: a contracultura, a liberação sexual dos anos 1960, o movimento hippie e a adoção de ideologias políticas progressistas como o feminismo da nova esquerda. Esses fenômenos não apenas pavimentaram o caminho para que a O.T.O. abraçasse, em sua administração contemporânea, a agenda woke, mas também forneceram as bases para a própria existência da O.T.O. moderna – bem como de muitas outras ordens ocultas e iniciáticas que se moldaram sob esse novo zeitgeist.
Portanto, há aqui um paradoxo inegável: os mesmos impulsos que possibilitaram a reconstrução da tradição mágica e o nascimento do conceito de Thelema como um caminho iniciático e libertário, hoje também servem como terreno fértil para sua corrupção e esvaziamento. O problema não reside na revolução em si, mas na falha de discernimento entre liberdade verdadeira e conformismo mascarado de rebeldia. Thelema jamais poderia ser reduzida a uma mera cartilha de valores contemporâneos – ela é, acima de tudo, um sistema de autossuperação, não de adesão cega a qualquer corrente de pensamento dominante.
Veja Hugh B Urban. Magia Sexualis: Sex, Magic, and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006. Veja também Gordan Djurdjevic. India and the Occult: the Influence of South Asian Spirituality on Modern Western Occultism. Palgrave, 2014. Também Tobias Churton. Occult Paris: the Lost Magic of the Belle Époque. Inner Traditions, 2016. Deste autor, veja seus livros sobre Aleister Crowley. Também Alex Owen. The Place of Enchantment: British Occultism and the Culture of the Modern. University of Chicago Press, 2004. Por fim, veja Wouter J. Hanegraaff. Hidden Intercourse: Eros and Sexuality in History of Western Esotericism. Fordham, 2011. Abordarei essa influência cultural nos próximos números do Segundo Volume de O Olho de Hoor.
[7] Sobre a visão thelêmico-política de Crowley veja Fernando Liguori. O Olho de Hoor, Vol. I, No. 3. Clube de Autores, 2018. Veja também Marco Pasi. Aleister Crowley and the Temptation of Politics. Acumen Publishing, 2013. E o ensaio de Frater IAO131. The Politics of Thelema. Em Fresh Fever from the Skyes: The Collected Writings of IAO131. Publicação privada do autor, 2014, pp. 174-81.
Em O Olho de Hoor, Vol. I, No. 3, destaquei a visão aristocrática de Crowley em relação à sociedade. Ele próprio se define como um aristocrata da liberdade em seus comentários sobre O Livro da Lei (II:25), uma interpretação que ressoa com a análise do historiador Hugh B. Urban. Segundo Urban: Apesar de sua afirmação de que «todo homem e toda mulher é uma estrela», a ordem social ideal de Crowley estava longe de ser igualitária e, na verdade, era bastante elitista. Rejeitando os princípios da democracia e da igualdade como restos efeminados do cristianismo, ele afirmava o poder dos fortes sobre os fracos, dos poucos aristocratas sobre as massas servis e entediantes. Como escreveu em 1937 em seu ensaio «Scientific Solution to the Problem of Government», o verdadeiro governante não tem utilidade para absurdos como liberté, egalité, fraternité, a ideia de que todos os homens são iguais ou que a mulher é igual ao homem. Magia Sexualis: Sex, Magic, and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006, p. 117.
Essa concepção de Crowley, muitas vezes mal interpretada, não se trata de um desprezo arbitrário pela humanidade, mas sim da afirmação da natureza hierárquica da existência, onde a verdadeira liberdade pertence apenas àqueles que conquistam seu destino por mérito próprio. Em O Livro das Mentiras (Weiser, 1952, pp. 100 e 172), ele é ainda mais enfático ao diferenciar governantes e escravos: O governante afirma os fatos como eles são; o escravo, portanto, não tem outra opção senão negá-los apaixonadamente, a fim de expressar seu descontentamento [...]. O Mestre ([...] o Magus) não se preocupa com os fatos [...], ele usa a verdade e a falsidade indiscriminadamente para servir aos seus propósitos. Os escravos o consideram imoral e pregam contra ele no Hyde Park. [...] A única solução para o Problema Social é a criação de uma classe com o verdadeiro sentimento patriarcal.
Para Crowley, a sociedade não deve ser estruturada em ilusões igualitárias, mas sim em ordens naturais de poder e conhecimento. A elite thelêmica – os Senhores de O Livro da Lei – são aqueles que dominaram sua Verdadeira Vontade e transcenderam a mediocridade das massas. Seu pensamento rejeita tanto a mentalidade de rebanho quanto as falsas promessas de igualdade imposta, pois vê nelas um entrave à ascensão espiritual e ao desenvolvimento da consciência individual.
Dessa forma, a aristocracia proposta por Crowley não é de nascimento, classe ou riqueza, mas sim uma aristocracia da realização e do poder pessoal. Aqueles que governam são os que ousam, aprendem, desafiam e triunfam sobre si mesmos, enquanto os escravos são aqueles que se conformam à inércia da multidão. Thelema, assim, não é um chamado à anarquia desordenada, mas sim à liberdade dos fortes, dos que têm coragem de viver de acordo com sua Verdadeira Vontade sem pedir permissão ao mundo.
[8] Veja Fernando Liguori. O Olho de Hoor, Vol. I, No. 3. Clube de Autores, 2018.
[9] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:51.
[10] Aleister Crowley. Pequenos Ensaios em Direção à Verdade. Editora Bhavani, 1999, pp. 56.
[11] Aleister Crowley. Cartões Postais aos Probacionistas. The Equinox. Tomo 1. Daemon Editora, 2021, pp. 72.
[12] Veja a epístola Deus Faz Amor Sagrado em Nome de Nuit. O Olho de Hoor (Vol. 1, No. 10).
[13] Aleister Crowley, Ritual de Minerval, Ordo Templi Orientis. Os itálicos são meus.
[14] Aleister Crowley. Liber Aleph. Clube de Autores, sem data, pp. 46.
[15] Aleister Crowley. Oito Palestras sobre Yoga. Clube de Autores, 2019, pp. 48-51.
[16] Aleister Crowley. Liber Aba: Magia em Quatro Partes. Penumbra, 2020, pp. 48.
[17] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, I:41.
[18] Aleister Crowley. Liber LXXVII vel Oz. É fascinante observar como os princípios fundamentais de Thelema vêm sendo distorcidos ao longo do tempo. Entre as mais notáveis injunções de Liber OZ encontra-se a máxima: Não existe deus senão o homem. No entanto, em um movimento de revisionismo ideológico, esse princípio tem sido deturpado sob o pretexto de adaptação aos tempos modernos. Como demonstrei detalhadamente em O Olho de Hoor (Vol. I, No. 3), Liber OZ não é um texto vago ou abstrato, mas um manifesto oficial da O.T.O., concebido a partir dos mistérios do ritual de passagem para o II° Grau da Ordem, cujo sistema de iniciação sempre foi delineado para homens, para aqueles que possuem o PHALLUS.
A relação entre o PHALLUS e os cultos de mistério é uma constante na história da espiritualidade. Desde tempos imemoriais, os cultos fálicos sempre estiveram associados aos mistérios masculinos e à energia criadora do homem, não da mulher. Como observou Alexander Marshack, citado por Alain Daniélou em The Phallus: Sacred Symbol of Male Creative Power: Uma vez que o PHALLUS envolve a ejeção do sêmen e da urina, podemos esperar alguma forma de explicação destes processos [...]. Mas nenhuma das histórias concernentes aos processos masculinos necessita envolver [uma explicação sobre] os processos femininos, nem incluírem o conhecimento de inseminação ou fertilização. Elas podem ser parte de uma mitologia masculina especializada, talvez transmitida na iniciação de garotos ou na convocação de caçadores como parte de um repertório xamânico masculino. (Daniélou, Inner Traditions, 1995, pp. 6).
Desde sua fundação, todos os arcanos da O.T.O. são androcêntricos, profundamente enraizados na sacralidade do PHALLUS e no mistério de sua função criadora. No entanto, a atual administração, rendida às pressões ideológicas modernas, passou a disseminar a falsa ideia de que a palavra PHALLUS, presente nas instruções da O.T.O., nada mais seria do que uma metáfora para o poder dinâmico presente tanto no homem quanto na mulher. Uma falácia absurda!
O PHALLUS, em seu contexto teúrgico e mágico, é muito mais do que um símbolo genérico de energia criadora – ele é a chave que estrutura toda a magia sexual thelêmica e o próprio sistema de iniciação da O.T.O. Traduzir Não existe deus senão o homem como Não existe deus senão o ser humano é mais do que um erro de interpretação – é uma corrupção grosseira da fórmula mágica fundamental da magia sexual thelêmica.
O verdadeiro significado dessa injunção não é uma questão semântica, mas um arcano dos mais profundos mistérios da magia sexual thelêmica – um mistério que define, não apenas a estrutura ritualística da O.T.O., mas também um estilo de vida e uma cosmovisão thelêmicos. Esse saber oculto, transmitido veladamente nos graus da Ordem, não pode ser diluído em metáforas vazias, sob pena de se perder a essência da Arte Real.
[19] Aleister Crowley. Liber LXXVII vel Oz.
[20] A fim de garantir o futuro da O.T.O., Grady Louis McMurtry (1919-1985), quem inaugurou o califado na Ordem, elevou alguns iniciados do IV°, P.I. e V° ao IX° provisório. Dentre eles estavam Lon Milo Duquette e sua esposa, Bill Heidrick, James Wasserman e sua esposa, e o atual Frater Superior da Ordem, William Breeze. É deste núcleo que saiu a atual administração da O.T.O. Nenhum deles, portanto, tendo passado pelo processo natural de avanço ao IX°. Veja J. Edward Cornelius. The Cult of Aleister Crowley: Being a True History of Thelema from it’s Beginning Until the Present. Publicação do autor, 2021, pp. 43-7.
[21] Falando sobre o aspecto transgressor da magia sexual thelêmica, Hugh B. Urban diz: No caso da magia [sexual] de Crowley, estes rituais transgressivos são de natureza androcêntrica, definitivamente misógina, uma apropriação e exploração do corpo da mulher. Veja Magia Sexualis: Sex, Magic and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006, pp. 135.
[22] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, II:54.
[23] Aleister Crowley. Liber AL vel Legis, III:57.
[24] Nos círculos thelêmicos contemporâneos, especialmente entre as thelemita-z feministas, há um esforço crescente para reescrever a história da Ordo Templi Orientis, apresentando Theodor Reuss (1855–1923), seu fundador, como um suposto defensor do feminismo. A base dessa narrativa se sustenta em sua ênfase no papel da mulher dentro da ordem, mas, ao analisarmos com profundidade suas crenças e escritos, percebemos que essa interpretação é uma distorção ideológica da realidade histórica. O historiador Hugh B. Urban desmistifica essa leitura equivocada ao afirmar: Seria um erro considerar Reuss um feminista. Seu ideal da verdadeira mulher estava amplamente alinhado com os valores predominantes do século XIX: a mulher deveria ser exaltada como mãe e reverenciada por seu papel central na esfera doméstica. Na verdade, Reuss era bastante crítico em relação à forma inicial do feminismo que emergia na Inglaterra, «com seu movimento extremo de negação da Maternidade («movimento das mulheres», as Sufragetes)», e ele esperava que a O.T.O. pudesse ajudar a restaurar o verdadeiro culto à Maternidade naquele contexto.
Reuss via a mulher não como um símbolo de igualdade política e social nos moldes do feminismo moderno, mas como a guardiã da sacralidade da Maternidade e do princípio passivo-receptivo essencial ao equilíbrio das forças mágicas e sexuais. Para ele, a mulher não deveria competir com o homem nos domínios do poder, mas sim ocupar sua posição natural dentro da estrutura iniciática e esotérica da Ordem. Seu pensamento estava profundamente enraizado na visão tradicionalista do Séc. XIX, na qual a mulher era reverenciada não como uma força de ruptura social, mas como a fonte geradora da vida e do magnetismo espiritual que sustentava a hierarquia oculta da O.T.O.
Portanto, tentar enquadrar Theodor Reuss no paradigma feminista contemporâneo é ignorar o contexto real de sua filosofia e distorcer sua visão sobre a mulher e a iniciação. Reuss não buscava a emancipação feminina nos moldes progressistas, mas sim o resgate de um princípio arquetípico perdido, ligado ao mistério da sexualidade sagrada e ao papel central da mulher como Sacerdotisa e Mãe dentro da estrutura mística da O.T.O. Veja Magia Sexualis: Sex, Magic and Liberation in Modern Western Esotericism. University of California Press, 2006, pp. 103.
[25] Veja Aleister Crowley. Liber Aba: Magia em Quatro Partes. Penumbra, 2020. Parte II, Capítulo A Lâmpada.
[26] O sucesso na vida, com base na Lei de Thelema, implica severa autodisciplina. Aleister Crowley. Magia sem Lágrimas. Clube de Autores, 2024, pp. 124.
Salve Baphomet! Salve o Maioral! Salve Pã. IAO Pã!